Penso que nos últimos dias, mesmo aqueles mais familiarizados com a temática da Protecção Civil e que, talvez por isso mesmo, são menos impressionáveis com determinadas ocorrências do que a maioria da população, não deixaram de ficar espantados com o cenário catastrófico que assolou a Madeira e, nomeadamente, o Funchal. Não é todos os dias (felizmente) que se observa um incêndio no Interface Urbano-Florestal (IUF) ganhar tamanha dimensão e, literalmente, avançar para o interior de uma cidade. O adjectivo "dantesco", tantas vezes associado a incêndios, depois das imagens de ontem, certamente, será aplicado com mais rigor por aqueles que o utilizam com frequência.
Tal como foi escrito na página no Facebook do Laboratório de Fogos Florestais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal estaria a viver o seu Oakland Fire com a entrada do fogo no centro do Funchal. Apesar de tudo, o fogo do Funchal teve consequências menores que o de Oakland, sobretudo, no que à perda de vidas humanas diz respeito.
Arrisco a dizer que o incêndio da Madeira e a forma como este avançou pelas áreas urbanizadas da ilha, será, daqui para a frente, o melhor e mais flagrante case-study de um incêndio no IUF no território português. Acima de tudo, este incêndio poderá ser o exemplo maior de tudo o que foi feito e não deveria ter sido, no que ao ordenamento do território diz respeito, quer no espaço florestal, quer no convívio entre este e o espaço urbano, quer no espaço urbano propriamente dito. Quando, por exemplo, o fogo chegou ao centro do Funchal e passou a ser um incêndio, exclusivamente, urbano, também ficaram patentes as debilidades existentes e que são comuns a quase todas as cidades do nosso território.
No espaço florestal propriamente dito e no IUF, apesar de notórios avanços que já foram feitos (será injusto não referi-lo), ainda há, de facto, muito a fazer. Ainda na semana anterior ao disparo do número de ocorrências e, por consequência, do número de incêndios de grande dimensão, tive oportunidade de passear pela zona Centro-Norte do nosso país e comentei várias vezes com quem me acompanhava dos verdadeiros "barris de pólvora" que íamos encontrando, nomeadamente, junto a zonas habitacionais com mato e vegetação "colados" às casas e, inclusive, a edifícios que albergam público e hóspedes... No dias seguintes, com muito pena nossa, alguns desses bonitos locais que visitámos, apareciam nas notícias devido à existência de incêndios de grandes proporções a afectá-los...
O diagnóstico está feito há muito e não vale a pena repeti-lo. Todos conhecem os motivos sociais, culturais, estruturais, económicos, políticos e outros que concorrem para que, anualmente (com maior ênfase em determinados anos), se vivam situações como as que vivemos nos últimos dias e, provavelmente, continuaremos a viver nos próximos. Além das questões ligadas ao ordenamento do território nacional, penso que o início da mudança de paradigma no que aos incêndios florestais diz respeito, começará no cidadão. Sensibilizando-o para não adoptar comportamentos de risco. Dotando-o de meios para que, juntamente com a comunidade onde está inserido, estes possam efectuar uma primeira intervenção e defender os seus pertences, libertando os meios de combate para outros locais onde estes sejam necessários ou não obrigando a saída destes meios dos locais estratégicos onde estão posicionados a combater o fogo. Punindo-o exemplarmente, quer quando não cumpre com a legislação em vigor no que à limpeza de matos diz respeito, nomeadamente, na criação de faixas de gestão de combustível ao redor das habitações e, sempre que for o caso, quando comete actos negligentes e de risco ou actos intencionais de fogo posto. O país tem que assumir, de uma vez por todas, que o cidadão é o primeiro e principal agente de Protecção Civil.
Depois, a questão do ordenamento do território, nomeadamente, do ordenamento florestal deverá passar, definitivamente, do habitual e já cansativo "politiquês", à prática efectiva, envolvendo todos aqueles que realmente entendem e estudam o assunto (todos poderão ser úteis) e pondo de parte a "politiquisse" costumeira e que pouco ou nada ajuda a estas e outras questões estruturais e do interesse do Estado.
Se o incêndio da Madeira deverá ser um case-study no que ao IUF diz respeito, existiram outras situações nos últimos dias que deverão ser estudadas e analisadas. Primeiro, o incêndio no parque automóvel do Festival Andanças (que, por experiência própria como consumidor de alguns destes festivais, tenho a certeza que poderia acontecer em outros eventos do género), deverá ser analisado por promotores deste tipo de eventos, nomeadamente, no que ao planeamento de emergência diz respeito e, de igual modo, pelas seguradoras, de modo a garantir a segurança de todos os frequentadores destes eventos festivos aquando da ocorrência de uma emergência, quer para que depois da emergência ocorrer, todos os envolvidos e lesados saibam com o que poderão contar no que diz respeito à reparação dos prejuízos.
A outra situação que deverá merecer análise (e que, parece-me a mim, no meio de toda a confusão vivida com os diversos incêndios, passou um pouco despercebida) foi a do corte de diversas auto-estradas, nomeadamente, a principal auto-estrada do país, a A1, devido aos incêndios e que obrigou milhares de automobilistas a ficarem retidos, sem alternativa, durante horas, num dia de calor tórrido e expostas ao fumo provenientes dos incêndios. Confesso o meu desconhecimento sobre a existência de um Plano de Emergência Rodoviário (ou com outra qualquer designação), mas parece-me que naquele dia, partindo do pressuposto que o mesmo existe de facto, estariam reunidas todas as condições para que a activação do mesmo fosse efectuada. Parece-me claro, que dado o número de horas que aqueles milhares de automobilistas e os respectivos passageiros (certamente com muitos idosos e crianças pelo meio) ficaram parados, ainda mais num dos dias mais quentes do ano e expostos a fumo, obrigaria a que algo fosse feito para minimizar a situação difícil destas pessoas.